10.12.06

FÉRIAS

FÉRIAS
Patrícia Evans
.
Alguém viu você
quando dobrou a esquina
e sem saber pra onde ia
entrou no carro e seguiu?
.
Alguém viu?
.
Alguém viu você esperando
colocarem gasolina no tanque,
estancar com pano sujo o sangue,
que saía do porta malas?
.
Sangue de grife, de marca?
.
Alguém viu no reflexo torto
do espelho, o seu rosto
pálido _ enquanto os pneus ralos
esmagavam os pardais?
.
Quem mais?
.
Você guiando em última marcha,
sequer apreciando as paragens
e eu voluntariamente amassada
junto à baderna de suas bagagens.
.
Era sangue de grife,
era sangue de marca!
.
.
.
CAMINHO CIGANO (ACRÓSTICO)

Paulo Roberto Novaes

(Para Patrícia Evans)


Pneus derrapam em palavras
Angelicais e asfalto molhado:
Toda brasa é fogo que pode reanimar-se.
Ruínas de sombrios castelos habitam nossos corações-
Inquisição que te quero longe de mim.
Calaram-se rotação e translação terrestres;
Início e fim encontram-se no durante.
Acenda o seu farol de milha e atropele-se!

E você não sabe se não se afoga em seu gesto...
Veja a chuva alagando seus pensamentos.
A postura de uma fera distraída - vigie-a!
Na claridade e na sombra, seu olhar é a sentinela de
Sua Alma, sonhadora e cigana.
MENDIGO DA POESIA
Paulo Roberto Novaes


Estou sem ar,
Sem chão.
Sem pés
(para poder voar).
Sem teto
(para ser livre).
Surpreso,
Mas nada tão assim.
Estou música
Nas cordas da
Tua harpa.
Estou mudo,
Sentido,
Porém sem mágoas.
Sou menino que se perdeu
Para encontrar-se
Com a encruzilhada.
Sou vento ardendo
Nas choças.
Fogaréu molhando
As roças -
Martírios.
Sou homem sério,
Calejado,
Mas nunca bruto.
Pincelo nas linhas
Móveis –
Psicografia.
Luto.
Cabe a você o saber
Por que.
Visto-me de branco.
Fogo.
E paz.
Perdi a hora do trem.
Encontrei navio
No cais.
Sou pétala rubra,
Caída,
No chão do teu jardim.
Teu não.
Teu sim?
Talvez.
Sou gesso.
Esculpido marfim.
Madeira calada,
Que emudece nunca.
Coloridos borrões,
De guache,
Telas.
Quebrantos, mazelas.
Pranto.
Sou mar.
Da maresia amante.
Água parada,
Da chuva.
Melada.
Doce.
Praias desnudas,
De areia corpo.
Velas.
Flores.
Promessas.
Dezembro.
Fevereiros,
Amores.
Carnaval.
O vinho,
O sangue.
O lodo,
O mangue.
O pântano.
O sol,
O sal.
Sou tudo
O que desejo ser.
Sou magia.
Branca,
Vermelha,
Negra.
O bem e o mal.
Se bobear,
sou Maria,
Com orgulho
e prazer.
Sou giz.
Aniz.
Joelho na escadaria
E matriz.
Fantasma estampado
No breu.
Ateu.
Poeta,
Plebeu.
Teu.
E de mais ninguém.
Clown, mágico,
Trágico.
Esse não sou eu.
Porque não sou.
Alguém.
Amém.
Sou poeira das ruas,
Folhas secas nas praças.
Das V.M.’s da vida,
Prostitutas seminuas.
Sou caca das traças.
Vivo sob baratos calçados,
Sempre enfermo.
Por isso,
vou a todo lado.
O cascalho,
no asfalto quente,
Me fez assim.
Terreno.
Carente.
Sou rio,
De mim afluente.
Além,
Mas logo ali.
Te quero.
Abraços.
Amassos.
Cansaços.
Proezas.
Impetuosa
Musa,
Que abusa
Da gentileza.
Sou toda tua.
Te amo.
Poesia crua.
E ninguém mais.
(Nua).
Perdida,
À toa.
Nos mares do norte,
Da vida.
Na proa.
Agora,
Com tua licença,
Perdoa (a mim),
Que me vou,
Que se foi...
Bailar sobre a rosa
Dos ventos,
Fuçar,
mal cheiroso,
canis de sarnentos.
Que é lá que eu vivo,
Que é lá que eu como
E bebo.
E que busco abrigo,
Das pragas,
Do final dos tempos.
Porque sou eu quem
Esmola o pão,
E recebe na cara
O tapa, o desalento.
Esboçado em tua face,
Um gargalhar,
O frio das madrugadas
E o teu lamento.
(Mas nunca o teu olhar).

Poesia,
Aonde me foste levar?
TEUS CABELOS

Paulo Roberto Novaes

Teus cabelos estão por toda parte.
No vento, pela casa, ao relento...
No chão do banheiro, na toalha ainda úmida,
Nos lençóis, emaranhados.
Teus cabelos ficaram em mim
E confundiram-se com os meus.
Mas os teus são lisos e os meus são crespos.
Os teus voam do ar ao menor movimento,
E eu fico observando onde vão pousar.
Teus cabelos estão por toda parte.
Na cozinha, sobre o fogão, dentro de um copo
Que você usou...
Na sala, estão em todo o sofá,
Fizeram-se enfeites na árvore de natal.
Teus cabelos estão por toda parte quase.
Menos no quarto.
Por que será?
Teus cabelos estão todos aqui,
Parece.
Mas e você, sem teus cabelos,
Onde está?

25.11.06

EVANS

OBS: ESCRITO EM HOMENAGEM À ESCRITORA, ATRIZ, CANTORA E POETA PATRÍCIA EVANS (ARTISTA DE GRANDE EXPRESSÃO NA PRODUÇÃO CULTURAL CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA).

por LUCILUZ

Uma mulher,
à que Evans assina;
à que Patrícia perfuma;
linda, linda se edita!
Vou ler-te à glória e poesia,
herdeira lídima dum Zeus.
Ave, lis duma escrita,
dinamiza a sinonímia!
(e meus olhos serão teus)

Há nas peças arianas,
encenar-te ao apogeu.
Nesses palcos de esperança,
canta, dança o verso: “Deus”..
(e meus olhos serão teus)

Tu que vives
- novos tempos - ,
quando firmas pensamentos.
Se escreves sentimentos,
sobre-gira meus momentos,
deste meu passado ateu.
E eu,..
Curvo à tu em reverência,
já me inspiro nesta essência.
Sendo em prosa
o que emanas,
faze tua honra em mantra!..
Sendo a ode em partitura,
que o teatro te possuas
nestes textos que são teus...
(e meus olhos serão teus)
.
.
Na Casa da Patrícia (Para Patrícia Evans)
NATHAN DE CASTRO

Na casa da Patrícia tem poesia
e um ponto de mirante à beira-céu,
de onde avisto a ponta de um pincel
que tinge a onda azul de maresia.

Na casa da Patrícia tem pinel
e uma palavra doce que sorria
no rosto de uma onda de escarcéu
que vive a amizade e a alegria.

Na casa da Patrícia tem abraços,
o beijo do "Piano" e duas prosas
que varam madrugadas, sem espaços

para a tristeza, a dor ou descompassos.
Na casa da Patrícia, o amor e as rosas
residem nas paredes preguiçosas.

1969

LUIZ HENRIQUES NETO

O foguete era movido a água e pedal
Pisava-se num êmbolo e a miniatura do Saturno 5
Subia aos céus e nós éramos os astronautas
Eram foguetes e bombas atômicas e discos voadores
e cérebros eletrônicos e televisões
e raios lasers e interferona e a cura do câncer
E nosso foguete ia decolar do meio da rua
que tinha poucos carros e muita criança onde a gente morava
E brincávamos e fazíamos barulho quando um homem calvo e de peito grisalho
ou era a camisa que era branca e hoje se faz corpo em minha memória
Abriu a porta e nos chamou do quintal de sua casa
Que entrássemos e acompanhássemos com ele
O Saturno 5 ia subir
Ia decolar
Levar o homem à Lua
Levar o homem a outros mundos
Levar o homem ao futuro
E nós entramos e vimos em embaçadas imagens em preto e branco
deformadas pela curvatura das velhas telas
A voz emocionada do locutor - não me lembro quem
ser engolida pelas chamas e fumaça e fogo e labaredas
E a plataforma pegou fogo
E o homem tirou os pés da terra
E Marcos, um amigo nosso
que a gente tratava com um certo carinho,
com pena e com medo, porque nossas mães mandaram
e porque sabíamos que ele o pai dele tinha morrido
e ele mesmo era meio bobo, ou como falávamos longe dele, retardado,
Mais do que nós ficou impressionado
E assustado até
"O foguete vai incomodar papai
e vai machucar papai do céu
vai passar pelo céu rápido e grande
e papai do céu e papai, que tá lá junto dele
vão ser atropelados"
E ele saiu correndo e assustado e a Marcinha
que ainda não tinha chegado na idade de não gostar de coisa de menino
começou a chorar que iam machucar papai do céu
e o que ia ser do mundo sem ele
E mesmo eu fiquei preocupado
com o que os astronautas iriam encontrar e enfrentar quando subissem no céu
e além dele
E se eles não iam se perder
Mesmo sendo uma criança
Porque os foguetes que iam à Lua foram feitos para levar a bomba
E os filmes e as histórias em quadrinhos e os especiais de tevê
E os garotos mais velhos e as meninas mais velhas
Falavam da bomba atômica e de Nostradamus e do fim do mundo
E às vezes eu começava a imaginar que um dia eu não ia pensar
Falar Conversar Respirar
E nem lembrar do meu próprio nome e me sentia só muito só na minha cama
E tinha vergonha de dormir com os meus pais
E tinha a bomba e eu sabia
que eles não podiam fazer nada
E tinha a morte e eu sabia
que eles não podiam fazer nada
E ninguém e ninguém e ninguém e ninguém
Mil chegará e dois mil não passará.
E o homem pisou na Lua e passeou de jipe lá
E os foguetes a água sumiram
E também os foguetes a fogo
E os céus foram abandonados pelos homens
E uma vez eu li uma reportagem num suplemento infanto-juvenil
Dizendo que Nostradamus previa o fim do mundo em 1973
E este foi o pior ano
Quando às vezes na cama eu lembrava disso
Eu tinha medo do escuro
E estrondos na rua eram as bombas
E roncos de motores de aviões misteriosos na noite adentrada
Eram os bombardeiros
E o relógio atômico e o Oriente Médio e a guerra do Yom Kippur
E Nixon e Watergate e o Vietnã todo dia na mesa do jantar
E o fim da guerra e a guerra continuava eu sem entender nada como nunca entendi
Os Estados Unidos estavam em guerra mas eu nunca via os americanos em guerra
Estavam em filmes, programas, noticiários e livros e quadrinhos
e não pareciam que estavam em guerra
E eu tinha medo de guerra, de qualquer guerra, as pessoas morriam e
a pior de todas ia matar todas
E eu queria ser grande, queria crescer e ser grande e forte como o homem calvo
Como meu pai
Que sempre sabia o que fazer
Pagar as contas
Consertar a máquina de lavar
Consertar meu robô a pilha
Montar guindastes com Montebrás
Serrar e cortar e martelar e a parte elétrica da casa
E ligar todo os cabos de um aparelho hi-fi
Gravador estéreo, vitrola Phillips automática
e o projetor de slides que fazia cineminha pras crianças da rua
Com os slides da Disney e outros multicoloridos
E um dia, enquanto meu pai passava para nós a história
da Velha e do Boneco de Piche
Os ferimentos do macaco
A maldade do boneco
e o poço sem fundo em que ela caía e parecia não ter mais salvação
Me trouxeram idéias de escuridão
A velha indefesa escorregando para o seu fim
E gritando num túnel escuro
E quando a história acabou e naquele sábado era só eu e meu irmão
E meu irmão foi comer sorvete que a gente tinha comprado tijolinho
Eu estava assustado e meu pai, meu pai percebeu e perguntou o que aconteceu
E eu disse que um dia, um dia ele ia morrer
E meu pai não entendeu o meu medo, ele era um homem que consertava as coisas
E comprava novas somente quando não tinha mais nenhum conserto
E sabia pechinchar e comprar só o que precisava
Meu pai riu e disse que eu também
Eu um dia ia envelhecer e morrer
E naquela noite eu não dormi direito
E sonhei com dinossauros
E monstros alados que me devorariam à minha simples visão
E a qualquer momento eu poderia vê-los
E eu cresci e aprendi a ler como gente grande
A fazer contas como gente grande
A entender história como gente grande
E aprendi a jogar bola e a montar kits Revell
com a inestimável ajuda do meu pai
Que me ensinou a desenhar quase tão bem como ele
E aprendi a ficar sozinho em casa e não ter medo do escuro
De lâmpadas apagadas
Mais escuro, descobri e aprendi
São alguns corações, algumas almas
E mesmo em nós, vários pedaços do espírito
E era menos opressivo, mas mais constante
Este medo da escuridão final e definitiva
E assim aprendi a fantasiar e imaginar
Mundos onde nada disso acontecesse
Onde eu podia mandar e reinar
Quase como meu pai
E Marcinha se foi, um dia eu tinha dado um beijo nela
E meus amigos
E vieram novos amigos e novos - e melhores - beijos
E a escuridão me atraía
A escuridão da noite
Os beijos ganhavam em umidade
Meia-noite
E textura e tato belos seios
Uma da manhã
E cheiro
Duas da manhã
E umidade e textura e tato belos seios
E cheiro e tato eu estava dentro de uma mulher
Três da manhã
E esqueci a escuridão e esqueci o medo
E me derreti e perdi o controle e gozei
Quatro da manhã
E meu pai me perguntando por onde eu andava
Quase não me via mais em casa
E quase eu não o via mais
Os segredos da noite não eram tão mortais
E - surpresa - meu pai não os conhecia tanto
E amanheceu e eu dormi
E entardeceu e acordei e não encontrei mais a moça que eu beijara
Ela se fora, outras viriam, outras iriam, mas eu não sabia
E fantasiei forte e mais e escrevi poemas e contos e músicas
Pois ela me lembrou que tudo se vai
E ela foi durante um momento a minha vida
e eu vislumbrei como seria quando eu não mais fosse
E enchi a cara e fumei e traguei e cheirei
E contei tudo isso para outras moças e as beijei e amei
E toquei-as todas em suas partes mais negras
Que eu ansiava e desejava
Como parecia meu pai nunca ter desejado em minha mãe
E esqueci todas as bobagens e acordes que pus no papel
E cresci e cresci eu era grande e forte como nunca em minha vida
E conhecia meus braços e minhas pernas com perfeição
Meu rosto não mais com acne, minha voz firme
Meus dentes definitivos e meu cabelo e minha barba e meu pau grande e grosso
Atingi o topo do meu corpo e do alto via a todos
E meu pai eu via aos poucos se curvando ao peso de sua barriga
De suas pernas fortes que emagreciam e sua pele que se encovava
E ainda assim ele consertava a máquina de lavar e pagava as contas
E trazia as compras para casa
Mal eu pagava as contas com meus primeiros dinheiros
E foi quase como conquistar a mulher conquistar meu primeiro emprego
Eu menti e me escondi e ocultei e afirmei e me fizeram assinar
E me enganaram
Em pouco tempo tudo aprendi
E um dia era igual ao outro e ao outro e ao outro
Os dias se pareciam um com o outro e passavam numa sucessão tão rápida
Que eu só podia medir olhando a face de meu pai
E vendo a ceifadora trabalhar dia a dia
E quanto ainda teria eu que me enrugar para lá chegar
E essas contas todas comprar, estas máquinas consertar, esta casa reformar
Esta mulher satisfazer, estes filhos sustentar, educar e ensinar e ainda na hora mais negra Confortar
Mesmo que ele grande e crescido se sinta como uma criança
Pensando que um dia o seu pai irá passar
E depois será ele próprio e tanto por fazer, aprender e ensinar
Um dia eu vou crescer e morrer
Já chegou o dia de crescer
Menos mulheres eu beijei
Mais empregadores eu enganei
Mais dinheiros eu ganhei
E a festa do dia em que meu pai se aposentou
Foi igual à do dia em que tive meu primeiro emprego
E me acompanhava neste dia uma mulher de quem não gostava muito
Não nos dávamos bem na cama e nem ela era brilhante ou deslumbrante
Mas os segredos da noite só os superficiais ela me entregou
Os profundos me negou
E eu, ao contrário de meus amigos, ainda assim escrevi, compus, poemei e sonetei
Implorei à escuridão que me contasse suas mais negras histórias
Mas ela permaneceu indecifrável e me mostrava um dia igual ao outro
E por mais que eu fantasiasse eu sentia, mesmo que muito pouco, meus braços já não tão fortes
E meu pai mais fraco do que eu e já não entendia de computadores e vídeo-cassetes
Era eu quem instalava e cabeava
E a tevê a cabo e eu sabia instalar todos os fios e era exatamente da mesma maneira
que ele tinha me ensinado a ligar a aparelhagem de som quando eu era pequeno
Mas ele dizia que não entendia, que estava velho e nem música mais ouvia
E bebia com os amigos e conversava com o filho como se fosse um homem
E eu me sentia ainda distante, eu tinha medo do futuro e da escuridão
E meu pai se encurvava, envelhecia e sabia que se ia e ria
Ria com os amigos em meio a um chope
E eu tinha medo e abraçava e beijava a mulher que eu não amava
Assim eu tinha um corpo onde podia, nem que por um momento,
entregar minha vida e nào sendo ela minha eu não tinha que me preocupar
Com o dia em que eu a perdesse
Pois um dia eu ia envelhecer e morrer
Um dia eu ia envelhecer e morrer
E me sentia mais e mais envelhecido
Ao lado da moça que eu não amava
E ela se foi e outras também
Que de mim não levaram muito
E delas mesmas pouco deixaram e por causa delas
Minhas fantasias e meus mundos quase não se alteraram
Continuaram decaindo e cínicos
Sem super-heróis e grandes paixões
Mas um dia esbarrei em Elsa
E ela sorriu e me encantou como uma feiticeira
Uma bruxa que em seus pactos satânicos
Conseguiu a imortalidade e a perenidade
Uma órfã da eternidade
E eu lhe escrevi poemais
E lhe compus canções
E lhe li minhas obras prediletas
Mas nada disto a impressionou
Pois ela podia ler direto em mim
O que eu tinha que demonstrar
Vindo de minhas fantasias e meus mundos paralelos e perdidos
E ela rasgou meu peito e varou minhas costelas
Minha carne já não tão firme e muito tecido adiposo
Músculos já não tão possantes quanto há dez anos
E cortou e jogou fora e o meu sangue jorrou e caiu ao chão
Aos seus pés
Ela destruiu meu corpo, imolou-me e com sua mão bela e fina
Segurou em suas mãos meu coração
Ainda pulsante
Como se fora uma ninja de história em quadrinhos
E meu corpo agonizante ao chão
Aos seus pés
Ainda pulsante
E não tinha mais que me preocupar
Com o dia em que eu não mais fosse
Eu já não mais era
Era outra criatura
Meu coração pulsava nas mãos dela
Meu cadáver caído aos seus pés
E o coração dela pulsava em minhas mãos
Seu cadáver caído aos meus pés
Estávamos apaixonados
E saímos de casa e mudamos de cidade para um emprego melhor
E o olhar de meu pai assustado que seu filho se ia
Como eu quando pensava no dia em que ele se fosse
Mas não, era eu que ia e ele que estava com medo
Mas eu também estava com medo
As contas para pagar, as máquinas de lavar a consertar
Mas eu não tinha crianças a ensinar
Tinha primeiro uma mulher a amar
Amar muito
Até o dia em que eu envelhecesse e morresse
Até o dia em que eu envelhecesse e morresse
Voltei à cidade para visitar meu pai
Menos vezes do que eu queria
E amei e os meus dias pareciam mais longos e verdadeiros
E subi de vida e de emprego e melhorei
Quase com a mesma velocidade que os microcomputadores
E a tevê a cabo e os micro systems e os vídeo-cassetes
E os DVDs e a Internet
E meu pai dizia que estava velho para essas coisas
E eu o via cada vez mais velho
Até o dia em que o telefone tocou lá em casa às três e meia da manhã
Num dia de semana
E não era engano
Era interurbano
E eu chorei e chorei
Menos que minha mãe e menos que meu irmão
E fizemos as contas do inventário
E acertamos as coisas com o advogado
E eu não entendia nada disto, mas tive que ir adiante
E improvisava e seguia, mesmo sabendo estar cheio de erros
Que eu esperava consertar mais à frente
E pensava se era assim que meu pai se sentia
Quando eu lhe dava meu robô com metralhadoras que piscavam e faziam barulho
Para ele consertar
E eu voltei para casa e a minha mulher
Meu lar
E ela me beijou e eu precisava ser beijado
E ela me amou e eu precisava ser amado
E nove meses depois eu queria beijá-la
E a beijei
Ela precisava ser beijada
Pois era mãe
Estou mais velho e mais grisalho
Já faz tempo que perdi a conta dos fios de cabelos de branco no meu peito
E devo ter alguns no cabelo também
E estou mais gordo do que gostaria
Embora Elsa não ligue
Já que meu corpo ela destruiu há tanto tempo
E erramos e erramos e erramos quando ensinamos
E erramos e erramos e erramos quando criamos
E erramos e erramos e erramos quando amamos
Nosso filho
Mas ele cresce apesar de tudo isto
E tenho vontade de lhe escrever poesias e contos e músicas
Que ele não entenderá
Mas são de mundos cada vez menos irreais e fantásticos
São de carne e osso como ele
Quando corre e tropeça e cai e chora de dor
E já lhe ensinamos as primeiras letras
E os primeiros jogos
No computador que eu domino tão bem
Que instalei lá em casa ligando certo todos os cabos
E dizendo ao técnico que veio entregá-lo que ele estava fazendo tudo errado
E ainda outro dia, enquanto assistíamos ao Discovery Channel
Na tevê do quarto que eu fiz uma ligação pirata da Net para termos vários pontos em casa
Logo depois de um especial sobre a estação espacial internacional
E antes dele jogar o videogame em que não consegue me vencer
Vimos um documentário em que o guepardo morria chifrado por uma gazela
E os filhotes morriam de fome sem ninguém para cuidar deles
E eu vi que meu filho se entristecia
E se preocupava
E chovia
E, num momento em que tudo parecia mais escuro
A luz do quarto estava apagada, somente acesas a tevê e as lâmpadas
Do pisca-pisca natalino - a árvore estava na sala
Ele me perguntou, naquele instante mais preocupado com a pergunta
do que com o presente que iria ganhar
"Pai, um dia você vai morrer, não vai?"
E eu sorri longa e longa e longamente
E exultei
Com o medo e a preocupação dele
E sorri e disse que sim, eu iria envelhecer e morrer
E ele, um dia, iria crescer
E envelhecer e morrer
E ele aquela noite deve ter dormido mal
E sonhado mil pesadelos
Assustados
E eu, estranhamente,
Amei sua mãe como há muito não amava
Pois eu não tinha corpo e agora vencia
Vencia tudo que me assustou minha vida inteira:
A Morte.
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
E eu vou envelhecer e morrer
E meu filho vai crescer
E envelhecer e morrer
Exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu
Meu filho é como eu
Meu filho é exatamente como eu

24.11.06

A PERGUNTA

PABLO NERUDA

Amor , uma pergunta a tem destruído.
Voltei para você da espinhosa incerteza.
Eu a quero reta como a espada ou a estrada.
Mas você insiste em manter
um canto de sombra que eu não quero.

Amor, entenda-me, eu a amo inteira,
dos olhos aos dedos dos pés,
dentro, todo o brilho, que você manteve.

Sou eu, meu amor, que bate em sua porta.
Não é o fantasma, não é aquele
que uma vez parou em sua janela.
Derrubo a porta: entro sua vida:
venho viver em sua alma:
você não pode me enfrentar.

Deve abrir porta a porta,
você deve obedecer-me,
deve abrir os seus olhos
para que eu possa procurar neles,
deve ver como ando com passos pesados
ao longo de todas as estradas
que cegas por mim esperam.

Não tema, sou seu,
mas não o passageiro ou o mendigo,
eu sou seu mestre, aquele por quem esperava
e agora entro em sua vida,
para não mais partir,
amor, amor, amor,
mas permanecer.

QUEM É
PATRÍCIA EVANS


A ARTISTA

Patrícia Evans iniciou sua careira artística aos 13 anos de idade e apesar de sua formação ser basicamente musical, possui larga experiência como atriz. Trabalhou em mais de 39 montagens teatrais, em sua maioria comédias e musicais, 25 das quais como protagonista, 4 como antagonista. Dividiu o palco com nomes consagrados no cenário artístico brasileiro como Débora Duarte, Ana Rosa, Mauro Mendonça, Rosanne Goffman, Beth Mendes, Claudio Cavalcanti,Suely Franco, Ricardo Graça Mello, Benvindo Sequeira, Lúcio Mauro Filho, Fernanda Nobre, Luis Mangnelli, Tânia Loureiro e tantos outros. Embora sua carreira tenha sido norteada pelo teatro, Patrícia trabalhou em televisão, foi integrante do elenco fixo de "Chico Total" na TV Globo e apresentou o programa de variedades "Pulsação" na CNT. Nos "anos 90" emplacou sucessos nacionais com o grupo musical "Grafite".
Além de sua carreira musico-teatral, como escritora, Patrícia Evans é vencedora de 6 concursos internacionais de poesia, tem seu nome incluído no projeto "Brasil 500 anos" de Leila Mícollis, junto ao MINC, que reúne os 400 poetas mais representativos da língua portuguesa dos últimos 500 anos, convidada pela própria autora do projeto. Patrícia foi selecionada entre as dez poetisas mais lidas de 2003, junto a Adélia Prado e Hilda Hilst e teve seu trabalho recentemente exaltado em crítica de Robert E. Sheridan, editor do "New York Times" por 32 anos, onde dentre outras coisas, diz Sheridan reconhecer o trabalho de Patrícia como "um dos mais poderosos" que já leu.


GRADUAÇÃO
Patrícia é graduada pelas Escolas de Música Villa Lobos, Calouste Gulbenkian, Antônio Adolfo e Cenário; nestas duas últimas também trabalhou como professora de música e canto durante 3 anos. Possui vários cursos de extensão nesta área, tem noções de dança, sapateado, cursou arquitetura na Universidade Federal Fluminense e se formou em inglês no Instituto Brasil Estados Unidos - IBEU - com certificado da Universidade de Michigan.


ÚLTIMOS TRABALHOS
Seu último trabalho em teatro foi a peça "O JOGO" de Luiz Henriques Neto, autor que coleciona prêmios literários, com direção de Tina Ferreira, filha de Bibi, iluminação de Djalma Amaral, trilha sonora de Tereza Tinoco, ao lado de Malu Prado e Ricardo Graça Mello. Ao final da temporada no Teatro Vannucci, shopping da Gávea, em 2004 a peça seguiu para o SESC Tijuca e teve sua temporada encerrada em 9 de outubro de 2005.Sua última experiência com literaura foi lecionar na Universidade Gama Filho, campus Downtown, no centro UNAT. Patrícia deu aulas de literatura e figuras de linguagem até setembro de 2005.

VELHO TEMA

VICENTE DE CARVALHO


Só a leve esperança, em toda a vida,

disfarça a pena de viver, mais nada;

nem é mais a existência resumida,

que uma grande esperança malograda



O eterno sonho da alma desterrada,

sonho que a traz ansiosa e embevecida,

é uma hora feliz, sempre adiada,

e que não chega nunca em toda vida.



Essa felicidade que supomos,

árvore milagrosa que sonhamos

toda arreada de dourados pomos,



existe sim; mas nós não a alcançamos,

porque está sempre apenas onde a pomos

e nunca a pomos onde nós estamos.

A SOLIDÃO E SUA PORTA


CARLOS P. FILHO


Quando mais nada resistir que valha

a pena de viver e a dor de amar

e quando nada mais interessar

(nem o torpor do sono que se espalha)



Quando, pelo desuso da navalha

a barba livremente caminhar

e até Deus em silêncio se afastar

deixando-te sozinho na batalha



e arquitetar na sombra a despedida

do mundo que te foi contraditório,

lembra-te que afinal te resta a vida



com tudo que é solvente e provisório

e de que ainda tens uma saída:

entrar no acaso e amar o transitório.

IDEAL

(Patrícia Evans)

PATRÍCIA EVANS

Este silêncio é estranho,
como estranho o teu rosto pálido,
estranha a tua mão vagabunda
estar parada, morta,
e estranho ver teu sexo flácido.

Como é estranho este silêncio!
Nem um ranger de porta,
nem um cair de lenço...
a tua boca imunda
estar assim fechada,
sem a palavra que corta.

Nenhum suor te escorre,
nenhum pensamento te assola,
nenhuma emoção te ocorre .
Estranha a tua pele fria...

teu semblante nada atônito
e ainda muito mais estranho,
a escandalosa delícia
de teu suicídio platônico.
ACONTECE QUE A MENTE MENTE.
PATRÍCIA EVANS

A volta é mero ato falho
(A mente, dá seus maus passos)
Parti a vida em retalhos
parti o inferno em quatro
parti Deus em mil pedaços
Meus pés estão descalços
meus cem nomes são falsos
meus ideais são palhaços
Deus entretanto permanece
em cada centímetro quebrado
Não estou de volta, acontece;
nunca consegui partir de fato.
OBJETO DE AMAR
ADÉLIA PRADO

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.
CHEGOU-VERÃO
ARNALDO BLOCH

Se toda chuva de verão
fosse doce como a que caiu essa tarde no litoral
não haveria verão triste nesses trópicos
Se toda brisa de verão
fosse fresca como a que soprou essa tarde no litoral
não haveria verão triste nesses trópicos
Se todo céu de verão
fosse colorido como o que pintou essa tarde no litoral
não haveria verão triste nesses trópicos
Se todo mar de verão
fosse manso e musical como o dessa tarde no litoral
não haveria verão triste nesses trópicos
UTOPIA
Paulo Roberto Novaes


Na alma sinto as dores
Da minha paz e do teu olhar,
E ainda da madrugada de ontem.
Amadureci, remocei, criei, destruí,
Mudei, resisti.
O que eu te fiz, o que me fizeste,
amanhã,
dia 30 de agosto de 2005?
Vi teus olhos, beijei tua boca, toquei teu corpo-
Tu te arrrepiaste e me deixaste entrar
Quando bati à porta.
Agora vejo tua poesia,
Tuas palavras confusas, diretas,
Sem deixas, sem queixas,
Envolventes, evasivas- cientes.
Eu quero uma luz que me adoce
O coração e um brilho
Que escureça meus erros
Tão à tona.
Eu quero uma canção que
Fale de coisas que não existam,
De relacionamentos que
Jamais darão certo,
De beijos que jamais serão
Esquecidos.
Eu quero um poema que me
Embriague e um vinho
Que me deixe lúcido,
Porque enroscar meu corpo
No teu é difícil
E absurdo.
Quis explicar, murmurar...
Pensei em cantar,
Depois em dormir,
Para esquecer,
Para me libertar.
E caminho nas cinzas
de algumas perguntas
que ficaram...
Estou reticente,
Eloquente,
Quase decente.
Deficiente.
Parece com o dono,
Penso eu,
Essa cara de triste.
Sonolento,
Devagar,
Quase parando.
E me dizem que devo
Acompanhar o ritmo.
Que ritmo?
Ando sem rumo,
Perdido no verde
Dos teus olhos,
Na luminosidade do
Teu olhar.
Sorris,
E não sei se me liberto
Ou se desespero.
Queria saber de tudo,
E mesmo sabendo
Tudo,
Pouco saberia da
Tua sede, da tua fome,
Da tua carne.
Quero te conduzir
Por um caminho de
Nuvens espinhosas,
E mostrar que a vida é
Complicada, cheia de
Conveniências
E às vezes muito
Entediante e plena
De cobranças,
De olhares que olham,
Mas não vêem,
De bocas que vulgarizam
Aquilo que não ouviram,
De mãos que não se erguem
Para ajudar,
Mas para bofetear.
A vida é assim,
Eu não sei mesmo
Como sou,
E você é um x+y,
Onde ‘x’ quer dizer
Todas as possibilidades
E ‘y’ quer dizer tudo
Que existe.
Como te encontrar,
Como te abandonar,
Como te namorar...
Como amar você?
Sou nu das tuas palavras,
Vestido quando me olhas,
Desnudo quando me
Acaricias.
Quero estar contigo,
Mas estou enganado:
Eu não quero ficar
Contigo,
Estou mentindo.
São 3:35h da manhã.
Vago na madrugada
Quente,
Sem a tua voz,
Sem a tua mão para me
Conduzir.
Levito no som da tua
Imagem quase obscena,
Tenho desejos,
Sucumbo ao sono,
Me deito,
Não querendo pensar
Em você,
E acabo te sonhando
Não no meu sono,
Mas nas batidas
Disritmadas do meu peito
E no bem estar que
Estar contigo
Me causa,
Mesmo que por um
Momento,
Mesmo que por um capricho,
Ainda que uma utopia.
TEMPORAL (Sob a luz de velas)
Paulo Roberto Novaes


As trevas lançaram-se contra
Honório Gurgel.
Sou guiado e intuído
pelos fantasmas das sombras
que se fizeram no breu.
As gotas de chuva forte gritam,
horrorizadas,
ao serem apunhaladas no chão.
O rugir de um leão alado
fuzilou a noite,
e estilhaçou em zil pedaços
o sono da Senhora Negra
dos Cabelos de Raios,
que dança na orgia
dos ventos e das tempestades.

Toda a ordem foi restabelecida
quando a energia elétrica retornou.
E esta poesia perdeu sua razão de ser,
porque não havia mais escuridão
onde se aninhar.


22.11.06

ENTRE A ESPADA E A CRUZ

Paulo Roberto Novaes

Confessarei algo a vós todos,
amigos meus:
Eu nunca mordo
Antes de passar a língua!
Seja o pão ou a carne,
A lua ou as estrelas do mar.
Sim, exponho-me,
Quase que por completo,
Ao mundo inteiro,
Derrapando pelas estradas
Da vida,
Como viaturas que tentam
alcançar seu destino,
Sobre a pista molhada
Pela chuva que cai.
Neste exato momento,
Eu me julgo,
Para logo, condenar-me
No próximo instante.
Ei-me entre a espada e a Cruz.
E como, pergunto eu a vós,
Meus amigos,
Eu que me confesso aqui,
Que me exponho,
Que sou advogado
e juiz de mim mesmo,
Como, eu vos pergunto,
Chegar até a pacata Cruz,
Sem antes lutar nas arenas de
Meu próprio coração humano
E rebelde,
E deixar sangrar-se minh’alma,
Já tão miserável e dorida,
De tantos rancores e dissabores,
De tanto carinho e de tanto amor?
Como cruzar o horizonte,
Para além do oceano e de
Todos os astros,
Sem me desvanecer primeiro,
Sem me apagar e ocultar-me
Entre os espinhos,
E então poder vislumbrar
O Início e a Causa
De todas as coisas?
Meus irmãos e amigos,
Sou presa e predador de todos
Os meus desejos e sonhos.
Sonhos às vezes impossíveis,
Desejos às vezes tão intensos e
Implacáveis.
Sim, eu escolho
A Cruz Redentora,
Mesmo sabendo que,
Entre Ela e eu,
Há um abismo desconhecido
E escuro.
Sim, meus irmãos e amigos,
Eu escolho a espada,
Que me servirá de ponte por sobre
O despenhadeiro da morte,
A fim de poder,
Ao término de tantas guerras
Que visam às rédeas
De minha alma,
Contemplar o Irmão,
Aos pés de Sua Santa Cruz,
E eu de olhos baixos
E marejados de sal,
Dizer “amém”
À vontade do Pai,
E aceitar,
Humilde que nunca fui,
Estar a Seu lado,
Numa quarta cruz.

“Perdoai-me, Pai,
porque talvez eu não saiba
o que escrevo.”

ATO DE CONTRIÇÃO

Paulo Roberto Novaes


anjo meu,
raio da minha primeira luz da manhã,
eu que te dispo em palavras,
eu que te chamo em sonhos,
que deliro teu nome,
eu que não sei mais quem sou,
porque, quando pensei que era,
deixei de ser depois que te reencontrei.
assim, mesmo o relógio sem bateria,
mesmo a estrada sem esquina em que se caminha,
o tempo passa e nos arrasta,
envoltos na bruma etérea,
que tomou o lugar de estrelas maravilhadas...
preciso adentrar em mim,
ser um só com meu leito,
libertar a alma sem preconceito,
e entregar-me àquele que foi Morfeu.
pálpebras pesam, como certamente
pesam as cruzes aos ombros...
como dizer-te, minha dama da noite,
insandecida de paixão e artes,
senhora da minha vida,
que meu corpo clama, em pura chama,
pelo descanso noturno
a que ele próprio faz jus?
porque não importa minha hora agora,
o galo canta porque o dia novo chega,
e, pesaroso, lá vou eu, em direção
ao seu cantar, novamente, ruidoso,
cumprir o que me foi pré-determinado
por minha, em quase sã consciência,
ALMA.

O QUE NÃO MORRE

Patrícia Evans



Depois que Ele subiu ao Pai,
em nome d'Ele arranquei escalpo,
apedrejei, incendiei, condenei.

Em nome d'Ele roubei, invadi,
eu destruí, ignorei, torturei,
depois que Ele subiu ao Pai.

Comi Seu corpo em hóstia.
Bebi Seu sangue em cálice.
Em minha mesa, Páscoa posta,
Judas, entretanto, não mostrou a face.

O pão, não dividi em partes;
guardei-o para meu deleite.
O vinho, o degustei metade,
a outra avinagrou com a tarde.

(Restou o misturar com azeite)

Chega-me o espectro da foice
e nada nunca me foi tão dorido,
ainda que de um cavalo, o coice,
a me por adormecido.

Como saber da absolvição?
Não foi ignorante que O usei,
a camuflar a maldade, que perpetuei
a cada falsa comunhão...

E agora, a extrema unção!
O badalar ao passar do féretro...
O Judas era cada minha traição
e o caixão é de fato meu, por mérito.

Em nome d'Ele, dizem,
é que meu corpo em febre arde,
que todas as pedradas me atingem,
que meus pecados me afligem
e que, como todo néscio covarde,
meus joelhos por minh'alma rogam.

Em nome d'Ele me comparei a Ele
e se O fui, por que a Ele abriu-se luz
e agora são trevas que a mim se voltam?

Há uma diferença entre nós;
esculpem em pedra um "aqui jaz" ,
enquanto por minhas vestes jogam,

entretanto,

quando Ele subiu ao Pai,
ninguém ouviu os sinos dobrarem,
como por mim agora dobram.

Eu voltei

Eu voltei
(Uma crônica rápida e rasteira sobre a neurose)


Patrícia Evans

Eu voltei mais pra saber como é que ele estava, que por causa da falta
que ele fazia. A curiosidade mórbida me matava. Será que ele morria?
Será que ele sofria ou ficava doente?

_Eu ainda amo você. - arrisquei o cinismo, porque sabia que se não
abrisse espaços, nunca ouviria o que queria ouvir. _ Voltei.
_Entendo.
_O que você entende?
_Entendo que tenha voltado e entendo que me ame.

Engraçado que ele não olhou pra minha cara dessa vez. Ele sempre
olhava pra mim quando queria começar a me ferir ou maltratar. Confesso que
fiquei preocupada com a primeira vez que ele foi imprevisível. Sabe, era
uma luta de opostos imantados, sempre doloroso e no entanto inevitável, mas
normalmente, quando eu voltava atrás, ele me olhava um olhar superior,
dizia alguns insultos, porque ainda sentia raiva, eu fingia me humilhar e ele
acabava cedendo. No início, quando isso acontecia, a gente ficava numa boa
por mais alguns meses até o próximo desentendimento forjado
conscientemente por um de nós. Com o tempo os desentendimentos foram
ficando menos espaçados e as pazes também, mas irremediavelmente eu
voltava, ele me olhava, me insultava, eu me fazia de pobre coitada, dizia que o
amava e tudo voltava ao normal. Dessa vez, porém, ele não me olhou.

_ E há alguma coisa que você não entenda?
_Sim.

Eu gelei. Eu não sei o motivo, mas havia alguma coisa muito errada
naquele novo. Fiquei calada esperando alguma reação que não
aconteceu. Eu me lembro, foram minutos intermináveis, que pareciam aqueles
instantes que ficam na memória guardados em câmera lenta. Eu sempre soube que ele me amava e a certeza é que me deixava tranquila para tripudiar. Ele também sempre soube que eu o amava e por ser tão óbvio ele se dava ao luxo de me mandar embora. Inventávamos razões onde não haviam porquês. A força desse amor era a propulsão para a medição de força e poder, na verdade era como se só estivesse bom se estivesse ruim. Guerra.
Não cabe aqui discutir a doença e a utilidade da guerra, mas identificar a neurose é sempre interessante ainda que isso não signifique cura. Saber que ele tinha certeza sobre o que eu sentia me fazia insegura, logo, para medir o quanto o que eu sentia era recíproco eu o feria na intenção que ele sofresse. O nível do seu sofrimento seria a avaliação do tamanho do seu amor. E quanto mais amávamos, mais sofríamos. A necessidade de saber do quanto e do como nos amávamos, a necessidade dessa medida e de sua reciprocidade nos fazia exímios lutadores em ringue de luta livre e nos tirava qualquer culpa ou incômodo em torturar o outro, ao contrário, era necessário
atingir o outro!
Eita círculo vicioso...hehehehehehe...Eu amava e por amar queria ser amada. Para saber se era amada eu precisava sentir no outro o medo de me perder - quando o outro sofria, eu tinha a certeza que era amada e a certeza me fazia amar mais - amando mais eu me sentia insegura e tinha que fazê-lo sofrer mais, para ter a certeza que seu amor crescera com o meu... Parâmetro amor-dor; uma rima fraca e pobre para poemas, mas incrivelmente perfeita para neuróticos incapacitados para a maturidade. O tamanho da dor era a medida do amor.

Eu tossi nervosa. Sabia que devia dizer alguma coisa, mas inexplicavelmente aquela era a primeira vez, que eu não fazia a menor idéia sobre que frase de efeito eu devia tirar da manga. Aliás, nenhuma frase de efeito me ocorria naquele instante. Era como se um leve pânico começasse a tomar conta da situação. Podia ser que fosse tudo. Eu só não suportaria o que começava a ficar nítido com aquele silêncio. A nossa neurose habitual era nosso jeito de nos arrumarmos e, claro, o costume e o hábito faziam as coisas serem confortáveis ao seu modo.

Havia alguma coisa, que desta vez ele não entendia! Ele não olhava pra mim! Ele não olhava pra mim! Ele não olhava pra mim!


Quebrou-se o silêncio ainda sem seu olhar se voltar.

_Eu não entendo pra quem você voltou.

Quanto mais amávamos, mais sofríamos. Mas a recíproca nunca
acontecera de fato.


* * * * * * *